
Haverá também sessões, com a presença do escritor nos seguintes locais:
Mulheres ávidas da segurança de um bom casamento, mulheres apaixonadas por homens brutais que perseguem amorosamente, porque acreditam poder amansá-los. Mulheres sem referências que não as masculinas, sem vontade que não a do homem, sem vida própria além dos filhos e dos casamentos. Mulheres que assim não podem amar, que chamam amor ao medo e à subserviência, que se esgotam no marido e nos filhos que secretamente odeiam. Mulheres exemplares. Que servem de exemplo. Mulheres fiéis e persistentes que são recompensadas. Mulheres que perdem o tino, que se oferecem a outros, que desistem do amor, e que acabam abandonadas.
Com as histórias de Paula e Brigitte, Elfriede Jelinek demarca as possibilidades de vida das mulheres austríacas nos anos 70. As perspectivas de miséria, maus tratos paternos e trabalho duro faziam com que qualquer rapariga encontrasse na ideia do amor um refúgio, na figura do homem um herói, no casamento uma aventura feliz. Com a concretização deste ideal, chegam também, no caso de Paula, os horrores de uma gravidez indesejada, os abusos e insultos com que toda a aldeia a brinda, a apatia e crueldade do marido. O casamento é o camisa de forças de que não sai, mas dentro da qual, ao menos, será respeitada, até que homens estranhos lha arrancam, e o adultério a condena de imediato à prostituição.
Brigitte calcula melhor a sua jogada, ao apostar num homem com negócio próprio. É-lhe fiel durante o namoro, atura-lhe os apetites por sexo e comida, instiga-o a fazer-lhe um filho e, mesmo que deseje limpar a retrete com a cabeça dele de cada vez que ele lhe toca, é feliz. Domou o homem. Alcandorou-se a ele de modo a conseguir a liberdade - a reclusão no lar parece-lhe doce, comparada com a reclusão na fábrica de costura onde, sem aquele casamento, poderia ficar toda a vida.
Pela pintura de semelhantes frescos, muitos consideram obscena, grotesca ou descabida a obra da vencedora do Nobel da Literatura em 2004. Vistas à lupa da escritora, as relações entre homens e mulheres são uma espiral de violência que termina nos filhos, até que estes crescem e perpetuam, por sua vez, o mesmo modelo escravizante de amor e sexualidade. É difícil acreditar que assim seja. Que aquilo que nos apresentam como amor possa ter uma arrecadação tão escura como a que Jelinek momentaneamente ilumina, para nosso horror. E para maquilhar e perfumar o feio amor, há cantores como Céline Dion, que colocam ao serviço do idílio uma voz capaz de encantar milhões de pessoas em todo o mundo.
Céline Dion, exemplo acabado e universal da cantora romântica, pode dizer-se, é uma resistente. Vinda de um velho mundo em que tudo estava definido entre homens e mulheres, a diva dói-se de que as coisas tenham mudado, dói-se da inconstância dos afectos humanos (Pour que tu m'aimes encore). Enfeitiçada pelos homens da grande cidade, mas com a pedra dos ensinamentos maternos no sapato, a mulher que estas canções encarnam tenta contrariar as actuais tendências, seduzindo o amante, negociando, na esperança de que ele, afinal, acredite ainda no amor eterno e estável (Make you happy). Nos seus álbuns, há pouco lugar para a promiscuidade, e quando ela aparece é para que lhe vejamos as nefastas consequências (All by my self).
Há principalmente, por estas bandas, a aceitação da dependência emocional, a rejeição da autonomia, o medo da solidão, a assunção de que apenas no amor se pode ser feliz. Todas as cantoras românticas o fazem, ainda que as letras sirvam de pretexto para alguma coisa que a voz tem de moldar, e pareçam inofensivas. Músicos e intérpretes de todos os estilos o fazem. É impossível dissociar o amor do amor à música pop. E é a certeza com que todos crescemos, de que há um romance perfeito à nossa espera, para enquadrar a nossa vida, e de que é preciso chorar muito por aquele que se perde, porque é um milagre que não soubemos perpeturar por mais do que um tempo determinado. O que Jelinek diz nos seus livros é aquilo de que, em adultos, começamos a suspeitar - o amor tem os seus contornos menos nítidos, guarda lugar para o ressentimento, para o ódio, para a desconfiança, para a dependência, para o calculismo, para a (auto)destruição. Principalmente se chegamos até ele com a fome que as canções cultivaram em nós desde crianças.
Um Mundo Sem Regras, Amin Maalouf